
Para quem não viu Mané Garrincha jogar, como é, obviamente, o meu caso, é muito difícil descobrir, por trás dos discursos saudosistas e inflamados daqueles que o viram, testemunhas ainda boquiabertas, como o ex-jogador e amigo do Mané, Nilton Santos, os jornalistas e escritores Armando Nogueira, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade, quem foi e como era, realmente, o jogador. O que esses discursos apaixonados fazem é construir a imagem de alguém que estava mais para extraordinário que para o humano. Mané seria, assim, um desses seres sobrenaturais, fugidos do Olimpo, que de tempos em tempos o esporte traz à forma humana, tais como os futebolistas Pelé, Maradona, Cruyff, Zico, Leônidas da Silva, Puskas, Zidane, Yashin, Platini, Rogério Ceni e Beckenbauer, ou os incríveis tenista e nadador, respectivamente, Roger Federer e Michael Phelps, ou ainda, do boxe, os pugilistas Mohamed Ali e Mike Tyson, e, por fim, do basquete, o realmente fenomenal Michael Jordan. Para todos esses atletas, a conquista da vitória parece ser apenas um evento acidental e sem importância quando comparada aos seus poderes de tornar reais até mesmo as idéias mais ousadas que brotam na mente de um atleta. A eles tudo parece possível e, o que é mais assombroso, tremendamente fácil.
A idéia de que Garrincha, dentre outros gênios acima citados, não tenha sido um humano, como

O que havia de mais encantador no jogador Garrincha, ao menos de acordo com o que os relatos sobre ele permitem crer, era como ele, indiferente aos outros vinte e um jogadores em campo e até mesmo à lógica sem graça do perde e ganha do futebol, parecia ser o praticante solitário de uma modalidade esportiva diferente, criada por ele mesmo, a partir duma costela do futebol. É claro que a carreira futebolista de Garrincha foi repleta de vitórias. Ele, ao lado de Pelé e outros gênios do futebol, conquistou a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, e, quatro anos depois, no Chile, com os gênios nas costas, a de 1962. Mas não foram simplesmente as medalhas e os troféus conquistados por Garrincha o que o elevaram à condição de mito, mas principalmente o drible, sua arte maior.

Essa descrição me faz lembrar um pequeno trecho da resenha de Marcelo Hessel, do Omelete, sobre o filme “Missão: Impossível III”. O crítico ressalta a marca que o diretor J. J. Abrams imprime no filme. O cineasta, antes de fazer com que o mocinho derrube os vilões coadjuvantes (daqueles coadjuvantes anônimos e mudos que são derrubados aos montes em filmes de ação), tem o cuidado de fazer com que a câmara se ocupe de apresentá-los: aproxima-se deles, mostra com um close os seus rostos, dá-lhes vida. Segundo Hessel, “é como se Abrams se importasse com eles, segundos antes de autorizar o trucidamento”. Abrams também faz algo semelhante em Lost, série televisiva de que é criador. Os fãs de Lost já estão acostumados ao seu estilo: antes de submeter os personagens às aventuras da história, Abrams tem o cuidado de apresentar minuciosamente cada um deles, com flashbacks.
Se procura-se fazer a mesma comparação com outros grandes dribladores, não dá certo. Maradona, por exemplo, com aquele golaço que marcou contra a Inglaterra na Copa de 1986, estaria muito mais para Quentin Tarantino que para J. J. Abrams. O deus argentino avançou com tanta velocidade e desprezo por seus marcadores, mais fugindo deles do que os encarando, que esses nem mesmo pareciam ter rosto; eram verdadeiramente coadjuvantes, panos de fundo da ação. Quem assistiu a Kill Bill vol. I e lembra-se da cena no restaurante japonês, certamente compreende a comparação.
Igual a Garrincha, em relação ao estilo de drible, jamais houve. Mas, a fim de esclarecer a diferença entre ele e os outros, cabe trazer à memória dois lances, ambos protagonizados por craques brasileiros. Romário, jogando pelo Flamengo, em 1999, pela Copa Rio São Paulo, pára com a bola nos pés já dentro da grande área; em frente a ele, a poucos centímetros, Amaral, o infeliz marcador; com um rápido elástico, num dos dribles mais incríveis que já vi, Romário deixa para trás o marcador corintiano atordoado e, com um leve toque do bico da chuteira, já quase sem ângulo, marca um gol simplesmente fantástico. Aí a torcida adversária teve que aplaudir. Amaral, tendo certamente comprometido a coluna, saiu do Corinthians pouco tempo depois.
O outro lance é protagonizado por Robinho, jogando pelo Santos, no final do Campeonato Brasileiro de 2002, contra o Corinthians. Com uma coragem e ousadia raras, sintomas de molecagem, ele avançou em direção ao marcador, o lateral direito Rogério, com as pedaladas que tornaram, definitivamente, a “pedalada” sua marca registrada. Atordoado com a ousadia do moleque franzino, Rogério foi recuando, recuando, recuando, entrou na área e, já fora de si, cometeu o pênalti.
A essência desses lances, tão fortemente marcados por um estilo mané, pode ser explicada citando-se Drummond: “se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios”.
Jogadas como as que o Mané fazia tão facilmente, bastando para tanto, que quisesse - e cujo estilo alguns raros jogadores foram capazes de imitar, como fizeram Rivelino e Romário, e fazem Robinho e Cristiano Ronaldo - produzem duas reações: alegria, dada a graça do drible, e pena, do “João”.
Denis Barbosa Cacique – 15 de setembro de 2007 (o bolão só termina quando o bolão acaba)