terça-feira, 18 de setembro de 2007

Garrincha: o gênio de que ouvi falar

Pouco importa que Manoel dos Santos, Mané Garrincha, jamais tenha, de fato, apelidado de “João” ao menos um dos defensores que tentavam, na maioria das vezes inutilmente, conter os seus avanços pelo flanco direito dos gramados. Na verdade, teria sido um jornalista quem criara esta estória, mais uma a dar corpo ao emaranhado de fatos e invenções que adornam o mito mané. Mas, neste caso, a questão do “disse” ou “não disse” não tem, por exemplo, a mesma relevância da polêmica em torno da mais célebre frase de Maquiavel, aquela que ele jamais disse, a saber, “que os fins justificam os meios”. Porque Maquiavel, além de não ter enunciado a frase que veio tornar-se a máxima do chamado “maquiavelismo”, também não elaborou, como se costuma supor, uma teoria política ressonante com essa máxima. Em Maquiavel, os fins não justificam os meios, e a idéia contrária só é possível graças a uma leitura equivocada dos textos do pensador. Mas, no caso do Mané, o fato dele não ter enunciado o “João” não muda em nada o fato dele ter dado vida, não a um somente, mas a centenas deles.

Para quem não viu Mané Garrincha jogar, como é, obviamente, o meu caso, é muito difícil descobrir, por trás dos discursos saudosistas e inflamados daqueles que o viram, testemunhas ainda boquiabertas, como o ex-jogador e amigo do Mané, Nilton Santos, os jornalistas e escritores Armando Nogueira, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade, quem foi e como era, realmente, o jogador. O que esses discursos apaixonados fazem é construir a imagem de alguém que estava mais para extraordinário que para o humano. Mané seria, assim, um desses seres sobrenaturais, fugidos do Olimpo, que de tempos em tempos o esporte traz à forma humana, tais como os futebolistas Pelé, Maradona, Cruyff, Zico, Leônidas da Silva, Puskas, Zidane, Yashin, Platini, Rogério Ceni e Beckenbauer, ou os incríveis tenista e nadador, respectivamente, Roger Federer e Michael Phelps, ou ainda, do boxe, os pugilistas Mohamed Ali e Mike Tyson, e, por fim, do basquete, o realmente fenomenal Michael Jordan. Para todos esses atletas, a conquista da vitória parece ser apenas um evento acidental e sem importância quando comparada aos seus poderes de tornar reais até mesmo as idéias mais ousadas que brotam na mente de um atleta. A eles tudo parece possível e, o que é mais assombroso, tremendamente fácil.

A idéia de que Garrincha, dentre outros gênios acima citados, não tenha sido um humano, como sugeriu, brincando, meu amigo corneteiro César, talvez seja a premissa necessária para explicar como alguém que foi tão brilhante dentro das quatro linhas pode, fora delas, definhar de maneira tão triste, vítima, sobretudo, do alcoolismo. Garrincha não cabia nos estreitos limites morais da sociedade brasileira, menos ainda, como se sabe, nos limites do seu próprio corpo. Não o julgo, apenas lamento o rumo que sua vida tomou, desembocando na doença, solidão e tristeza. No fim das contas, parece ser um erro querer dissociar o Mané jogador do Mané pai de família, boêmio e amante, do mesmo modo que é absurdo imaginar que suas pernas pudessem ser tortas dentro de campo e, fora dele, corretas. A respeito disso tudo, sábias mesmo são as palavras de Nelson Rodrigues: “um Garrincha transcende todos os padrões de julgamento. Estou certo de que o próprio Juízo Final há de sentir-se incompetente para opinar sobre o nosso Mané”.

O que havia de mais encantador no jogador Garrincha, ao menos de acordo com o que os relatos sobre ele permitem crer, era como ele, indiferente aos outros vinte e um jogadores em campo e até mesmo à lógica sem graça do perde e ganha do futebol, parecia ser o praticante solitário de uma modalidade esportiva diferente, criada por ele mesmo, a partir duma costela do futebol. É claro que a carreira futebolista de Garrincha foi repleta de vitórias. Ele, ao lado de Pelé e outros gênios do futebol, conquistou a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, e, quatro anos depois, no Chile, com os gênios nas costas, a de 1962. Mas não foram simplesmente as medalhas e os troféus conquistados por Garrincha o que o elevaram à condição de mito, mas principalmente o drible, sua arte maior.

Armando Nogueira brinca que, “para Mané Garrincha, o espaço de um pequeno guardanapo era um enorme latifúndio”. É daí que afirmo que ele era o praticamente solitário de uma modalidade própria, que não era futebol, embora brotasse dele. Quando Mané parava em frente aos marcadores adversários e punha em marcha aquele ritual de ir mas não ir, de que importava o gol? Garrincha encarava os marcadores, dava vida a eles e, depois, num movimento rápido, mas simples, deixava-os para trás. Às vezes até mesmo empurrava a bola um pouco à frente, ameaçando entregá-la ao adversário, depois a recolhia, e partia. Armando Nogueira tem uma tese interessantíssima sobre os dribles de Garrincha, para ele, “o drible é, em essência, fingir que se vai fazer uma coisa e fazer outra; fingir, por exemplo, que se vai sair pela esquerda, e sair pela direita. Pois o Garrincha é a negação do drible. Ele pega a bola e pára; o marcador sabe que ele vai sair pela direita; o público todo sabe que ele vai sair para a direita; seu Mané mostra mais uma vez que vai sair pela direita; a essa altura, a convicção do marcador é granítica: ele vai sair pela direita; Garrincha parte e sai pela direita. Um murmúrio de espanto percorre o estádio: o esperado aconteceu, o antônimo do drible aconteceu”.

Essa descrição me faz lembrar um pequeno trecho da resenha de Marcelo Hessel, do Omelete, sobre o filme “Missão: Impossível III”. O crítico ressalta a marca que o diretor J. J. Abrams imprime no filme. O cineasta, antes de fazer com que o mocinho derrube os vilões coadjuvantes (daqueles coadjuvantes anônimos e mudos que são derrubados aos montes em filmes de ação), tem o cuidado de fazer com que a câmara se ocupe de apresentá-los: aproxima-se deles, mostra com um close os seus rostos, dá-lhes vida. Segundo Hessel, “é como se Abrams se importasse com eles, segundos antes de autorizar o trucidamento”. Abrams também faz algo semelhante em Lost, série televisiva de que é criador. Os fãs de Lost já estão acostumados ao seu estilo: antes de submeter os personagens às aventuras da história, Abrams tem o cuidado de apresentar minuciosamente cada um deles, com flashbacks.

Se procura-se fazer a mesma comparação com outros grandes dribladores, não dá certo. Maradona, por exemplo, com aquele golaço que marcou contra a Inglaterra na Copa de 1986, estaria muito mais para Quentin Tarantino que para J. J. Abrams. O deus argentino avançou com tanta velocidade e desprezo por seus marcadores, mais fugindo deles do que os encarando, que esses nem mesmo pareciam ter rosto; eram verdadeiramente coadjuvantes, panos de fundo da ação. Quem assistiu a Kill Bill vol. I e lembra-se da cena no restaurante japonês, certamente compreende a comparação.

Igual a Garrincha, em relação ao estilo de drible, jamais houve. Mas, a fim de esclarecer a diferença entre ele e os outros, cabe trazer à memória dois lances, ambos protagonizados por craques brasileiros. Romário, jogando pelo Flamengo, em 1999, pela Copa Rio São Paulo, pára com a bola nos pés já dentro da grande área; em frente a ele, a poucos centímetros, Amaral, o infeliz marcador; com um rápido elástico, num dos dribles mais incríveis que já vi, Romário deixa para trás o marcador corintiano atordoado e, com um leve toque do bico da chuteira, já quase sem ângulo, marca um gol simplesmente fantástico. Aí a torcida adversária teve que aplaudir. Amaral, tendo certamente comprometido a coluna, saiu do Corinthians pouco tempo depois.

O outro lance é protagonizado por Robinho, jogando pelo Santos, no final do Campeonato Brasileiro de 2002, contra o Corinthians. Com uma coragem e ousadia raras, sintomas de molecagem, ele avançou em direção ao marcador, o lateral direito Rogério, com as pedaladas que tornaram, definitivamente, a “pedalada” sua marca registrada. Atordoado com a ousadia do moleque franzino, Rogério foi recuando, recuando, recuando, entrou na área e, já fora de si, cometeu o pênalti.

A essência desses lances, tão fortemente marcados por um estilo mané, pode ser explicada citando-se Drummond: “se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios”.

Jogadas como as que o Mané fazia tão facilmente, bastando para tanto, que quisesse - e cujo estilo alguns raros jogadores foram capazes de imitar, como fizeram Rivelino e Romário, e fazem Robinho e Cristiano Ronaldo - produzem duas reações: alegria, dada a graça do drible, e pena, do “João”.

Denis Barbosa Cacique – 15 de setembro de 2007 (o bolão só termina quando o bolão acaba)

domingo, 16 de setembro de 2007

A Maldição do Campeão

Certa vez, eu e meu colega de cornetagem, Bruno, conversávamos sobre algumas das peculiaridades do futebol, vocês sabem, aquelas características que fazem do esporte bretão o mais belo, emocionante, poético e místico dentre todos os demais. Após vários argumentos, alusões e recordações, ambos chegamos a uma mesma conclusão: no mundo da bola, as leis estabelecidas pelas ciências não se aplicam de forma regular e previsível. Vejam, não estou dizendo que o futebol é totalmente sem nexo. Com efeito, as leis da lógica, da matemática e da física funcionam, como queria Kant, de forma necessária e universal durante a maior parte do tempo em que a bola rola. Contudo, existem alguns momentos, instantes de dimensão imensurável, durante os quais o futebol parece ser regido por algum tipo de deus do caos, que faz com que todas as supracitadas ciências falhem retumbantemente na tentativa de explicá-los racionalmente. Em tais momentos, temos a impressão de que os deuses sérios saem de férias e deixam o poder esférico nas mãos de uma espécie de Dioniso de chuteiras, ou de algum anjo decaído que possui os poderes de Hiro Nakamura. O fato é que a configuração espaço-temporal mostra-se totalmente distorcida e ainda não surgiu nenhum Einstein da bola que fosse capaz de explicar esses desvios.

Foram exatamente essas meditações cornetísticas que nos deram a idéia de criar a seção “Improbabilidades Infinitas”, um espaço onde nos propomos a relembrar e comentar os momentos e fatos mais estranhos, inacreditáveis e inexplicáveis do ludopédio. Nesta presente cornetagem, tratarei de uma coisa extremamente menosprezada por todos, ironizada pelos racionalistas de plantão, chamada de sobrenatural, fictícia, fruto de mentes delirantes. Não faltará quem me acuse de apreciador de filmes B tipo “Colheita Maldita” e das satânicas canções do Iron Maiden e afins. Mesmo assim, tenho de dizer que estou absolutamente convencido de que, pelo menos no terreno do futebol, ela existe e deve ser temida. Estou falando da maldição.

Ao procurarmos os exemplos e manifestações mais recentes de Lúcifer no mundo da bola, vamos parar direto na Europa, mais precisamente na UEFA. E este é um momento oportuno para falar sobre isso, uma vez que a nova temporada da Champions League, reduto mais badalado do momento para os corvos ludopédicos, está prestes a começar. A primeira pergunta que surge quando se inicia um certame é aquela de sempre: quem será o campeão? Liverpool, Chelsea, Manchester, Real Madrid, Barcelona, Internazionale? Muito difícil responder. Arriscar um palpite a essa altura é dar um tiro no escuro. Estou fora. Todavia, há algo que eu posso afirmar com segurança e sem medo de errar: o Milan NÃO será campeão.

Alguém logo perguntará: “Por quê? Existe uma razão que justifique essa afirmação temerária?”. Eu respondo: razão, razão mesmo não há. Contudo, existe sim e sem sombra de dúvidas... uma maldição: a “Maldição do Campeão”. Não é brincadeira, é fato: desde a temporada 1992/93, quando a antiga Copa dos Campeões da Europa passou a se chamar UEFA Champions League e a ter o presente formato, jamais um clube se sagrou bi-campeão. E mais: ao longo dessas quinze temporadas, apenas três campeões chegaram à final no ano seguinte ao título: Milan (94/95), Ájax (95/96) e Juventus (96/97). Fora isso, o melhor resultado de um campeão foi ter alcançado a semifinal: Borussia Dortmund (97/98) e Real Madrid (00/01 e 02/03). Os outros nove campeões caíram todos prematuramente.

E a coisa parece estar se agravando cada vez mais. No século 21, com exceção do Real Madrid, nenhum campeão chegou sequer à semifinal. O melhorzinho foi o Bayern que, em 01/02, chegou às quartas de final. Quanto aos outros,... uma tragédia pior que a outra.

Vejam só a história da temporada 03/04 e me digam se a coisa não ultrapassa os limites da razão. Nesse ano, a coisa foi tão feia que a maldição atingiu não apenas o atual campeão, como também o vencedor retrasado. O Real Madrid, que erguera a taça em 01/02, fazia uma boa campanha e chegou às quartas para enfrentar o inexpressivo Mônaco, cujos principais jogadores eram Morientes e Giuly (!!). Com Zidane, Figo e Ronaldo (em forma), o Real venceu a ida por 4x2, no Santiago Bernabeu. Fatura liquidada, certo? Diga isso para os corvos malditos. No jogo de volta, o time do principado fez 3x1, com direito a gol de letra do Giuly (!!!). Real eliminado pela regra dos gols marcados fora de casa.

Agora, se isso ocorreu com o campeão de dois anos antes, imaginem o que os corvos reservavam para o pobre Milan, ganhador do ano anterior. Os italianos, também nas quartas, pegaram o Deportivo La Coruña. Primeiro jogo, em San Siro: Milan 4x1. Festa rossonera: a vaga na semifinal estava garantida. Mas, no caminho havia uma... maldição. Carlo Ancelotti foi à Galícia crente de que bastava administrar o jogo. E que bela administração! No intervalo, o Deportivo já enfiava 3x0, placar suficiente para lhe garantir a classificação. Ainda assim, na segunda etapa, Fran teve tempo para decretar os 4x0. As semifinais do torneio foram: Chelsea x Mônaco e La Coruña x Porto. Estes foram os primeiros indícios de que 2004 se configurava como o ano da zebra no calendário ludopédico, o que foi confirmado logo em seguida com a conquista da Libertadores pelo Once Caldas e da Eurocopa pela Grécia. Ah, já estava me esquecendo: na final, o Porto bateu o Mônaco por 3x0. Um dos gols foi de... Carlos Alberto! (Sim, ele mesmo, do Corinthians, do Fluminense,...).

Chegamos então à temporada 04/05. O Porto quase caiu na primeira fase (o que seria inédito para um campeão). Uma vitória na bacia das almas contra o Chelsea evitou o pior. Mas nas oitavas não teve jeito: maldição. Na ida, em casa, 1x1 contra a Inter. Na volta, no Giuseppe Meazza (afinal, San Siro é o campo do Milan), 3x1 para os italianos.

Em 05/06, o Liverpool defendia o título, após consumar uma das maiores improbabilidades infinitas da história. Na final do ano anterior, foi para o intervalo tomando de 3x0 do Milan. No segundo tempo, o milagre: 3x3, seguido da vitória nos pênaltis, com Dudek no gol (ah, é uma improbabilidade mais infinita que a outra). Entretanto, no ano seguinte, isso já fazia parte do passado e os Reds tinham um adversário mais poderoso do que o Milan ou qualquer outro grande clube. Na primeira fase, tudo até que ia bem: Rafa Benítez cantou Don’t Let Me Down para os corvos e seu time terminou em primeiro lugar num grupo que tinha o Chelsea. Nas oitavas, encararia o inofensivo Benfica. Inofensivo em situações normais, mas desta vez os portugueses tinham o Sobrenatural de Almeida como seu fiel escudeiro. Resultado: duas derrotas dos Reds, sem marcar nenhum gol, incluindo um 2x0 em pleno Anfield Road. Essa temporada acabou por consagrar o Barcelona e mais uma improbabilidade infinita: na final, 2x1 sobre o Arsenal, de virada. Quem fez o gol do título? Sim, ele mesmo... BELLETTI.

A temporada 06/07 pintava como a grande chance de se pôr fim às lucubrações satânicas que vinham assombrando a liga há tantos anos e mandar os corvos de volta às profundezas do limbo. Afinal, o Barça, um império de tradição ludopédica, dono de um verdadeiro timaço, parecia ser à prova de maldições. “Més que un club!”, bradam os catalães. “Més que una maldición!”, bradaram os corvos. A tragédia blau-graná já começou no sorteio: um grupo com Chelsea, bi-campeão inglês, e Werder Bremen, vice alemão. E tudo ficou realmente complicado após as batalhas (literalmente) contra os Blues. A derrota em Standford Bridge e o cruel 2x2 no Camp Nou, com aquele gol do Drogba aos 45 da etapa final, colocaram o Barça em terceiro lugar. Só que aí, os corvos resolveram dar uma breve trégua. Os catalães passaram para o mata-mata, graças aos 2x0 sobre o Bremen, com gol de Gudjohnsen e tudo (ah, essas improbabilidades não acabam mais). Mas então veio o Liverpool e a maldição deu as caras de novo. Derrota por 2x1 de virada, em pleno Camp Nou, com gol de pé direito do Riise (!!). Na volta, o Barça foi bravo e venceu por 1x0, gol de... pois é, Gudjohnsen. Inútil: os gols fora de casa foram fatais.

Resumo da ópera: os tifosi milanistas podem ir colocando as barbinhas de molho. A festa, após a vingança contra o Liverpool, foi boa enquanto durou. Agora, a nova temporada promete ser negra, pelo menos no que se refere à Champions League. A primeira fase até que deve ser tranqüila, contra Benfica, Celtic e o poderosíssimo Shakhtar Donetski. Mas depois é que eu quero ver. Se o Milan cair nas oitavas, alguém ainda duvidará dos poderes sinistros que rondam os gramados europeus? E não adianta matar os corvos. Satanás ludopédico enviará outras aves agourentas para nos assombrar. A Maldição do Campeão é real.