quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Heróis de Ninguém

Devido à máfia da televisão que controla o futebol brasileiro hoje em dia, raramente tenho a oportunidade de acompanhar um jogo entre dois times do Rio de Janeiro, seja do campeonato local ou do Brasileirão. E isso me deixa bastante triste, uma vez que a privação de embates cariocas faz com que uma de minhas primeiras e mais agradáveis experiências ludopédicas fique, a cada ano que passa, mais descolorida e perdida em algum lugar nebuloso da minha já surrada memória. Estou falando do Campeonato Carioca.

Desconfio que os torcedores paulistas um pouco mais jovens do que eu jamais assistiram a sequer uma partida inteira e ao vivo do certame mais charmoso do mundo. Felizmente minha geração ainda pegou a época em que a Band transmitia o torneio, sim, para todo o Brasil, ali pelo começo e meados dos anos 90. Ah, e que grande espetáculo era aquele! Os magníficos clássicos de domingo no Maracanã! Clássicos em que os clubes grandes mandavam a campo times verdadeiramente grandes. Até os jogos de segunda à noite, quando Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco iam a alguma Rua Bariri ou Moça Bonita da vida para enfrentar o time da casa, eram sensacionais.

Eu acompanhava o campeonato dos vizinhos com a mesma ou talvez até com mais atenção do que a dedicada ao meu torneio doméstico. E torcia pelo Fluminense, talvez por alguma influência de sua tricoloriedade, predicado que une por um laço fraterno o clube das Laranjeiras e o meu time de coração. Mas esse não era o principal motivo da minha preferência pelas “três cores que traduzem tradição”. O Flu era meu time porque nele atuava meu primeiro ídolo no futebol, um herói, um super-herói, meu grande herói: o Super Ézio. Como jogava aquele Super Ézio! Centroavante grossíssimo, é verdade, mas o que importa? Ele era oportunista como poucos, sempre estava no lugar certo para balançar as redes: autêntico ruim-que-faz-gol do mais fino pedigree. E como fazia gol! Era sem dúvida um ente sobre-humano, ao menos dentro da grande área. Depois de Romário, é Super Ézio na cabeça. Pobre Madureira! Quantos gols o infeliz tricolor suburbano não levou do demoníaco matador, assassino nato de goleiros? Era cruel, muito cruel aquele artilheiro! Um pecado dos mais lastimáveis é o fato de Nelson Rodrigues não ter vivido para ver o Super Ézio em ação. Imaginem quantas e quão fabulosas crônicas não teriam nascido nas tintas daquele genial e fanático tricolor.

Um tal mito, uma tal lenda, uma tal aura que se configurou em torno de um jogador aparentemente comum não poderia surgir senão a partir da obra de outro gênio. Foi, de fato, a voz marcante de um divino locutor o solo fértil no qual tal figura pôde verdejar. Ficou a cargo de Januário de Oliveira, um verdadeiro rapsodo das sagas ludopédicas, a tarefa de cantar as gestas épicas do herói. Além do “cruel, muito cruel” já citado, o folclórico Januário criou bordões inesquecíveis, que integrarão a antologia do esporte até o fim dos tempos. Ainda hoje posso ouvir, ecoando em minha memória, a frase que se seguia ao apito inicial: “Bola rrrrrrolando no Maracanã!”. E também aquele brado altissonante, pronunciado toda vez que um atleta ficava prostrado no solo: “TÁ LÁ mais um corpo estendido no chão!”. Sem falar no comentário singelamente jocoso, apresentado sempre que um boleiro realizava uma lambança bisonha: “Sinistro, muuuuito sinistro!”.

Januário era um artista. Januário pintava quadros e esculpia mármores com a vós. Impressionante como ele conseguia transpor para a TV a magia e a potência criativa da narração do rádio. Só ele foi capaz de realizar esse feito. Super Ézio foi sua criação máxima, sua obra-prima. E o Ézio real não decepcionava: castigava as redes como um sádico. Todo jogo do Flu com Januário no microfone era garantia de que o grito de louvor ao super-herói seria escutado, provavelmente mais de uma vez na partida: “Cruel, muuuuito cruel esse Super Ézio!”.

Esse maremoto de recordações veio a inundar minha praia mental devido ao clássico do próximo domingo, o clássico dos clássicos, “o clássico que começou quarenta minutos antes do nada”. De fato, foi justamente um Fla-Flu daquela época áurea o melhor jogo de futebol que presenciei em toda minha vivência ludopédica. A finalíssima do Carioca de 95 foi um momento singular, no qual toda a eternidade do tempo se mostrou menor do que noventa minutos, no qual toda a extensão espacial do universo ficou circunscrita a uma relva de 110 por 75 metros. Foi um momento em que todos os seres vivos do planeta perderam sua individualidade e passaram a ser representados sob a forma de vinte e dois entes transcendentais; um momento em que uma reles esfera feita de epiderme bovina passou a reluzir mais que ouro e a valer mais que a pedra filosofal. Quem viu aquela final chegou ao conhecimento mais imediato do fundamento ludopédico da existência. O futebol em si, despido de suas formas acidentais, nunca se mostrou de forma mais nítida e acessível ao nosso limitador aparato sensorial.

O Flamengo era “o time dos sonhos”. No ano do centenário, Kleber Leite gastou a prata que tinha e que não tinha para montar uma seleção brasileira na Gávea: Branco, Mazinho, Sávio, Romário, entre outros. Mas tudo isso foi em vão. Pois o Tricolor, embora não tivesse nenhum craque, a não ser Renato que, no entanto, já via raiar no horizonte o crepúsculo de sua fase knocking-on-heaven’s-door, apesar disso, ia dizer, o Flu contou com a ajuda do Olimpo. Hércules e Aquiles foram enviados ao Maraca para serem os anjos protetores das Laranjeiras.

Insuflados por essa força, os guerreiros do Flu se transformaram em heróis supremos, embora fossem, em todos os outros dias das suas vidas, heróis de ninguém. O galináceo arqueiro Wellerson teve uma tarde de Castilho; Ronald, lateral direito cuja pobreza técnica era de dar dó, jogou como Carlos Alberto Torres; Márcio Costa foi um Didi da nova era; Djair armou o jogo com a elegância de um Gérson moderno e Rogerinho despendurou as chuteiras de Rivelino. No primeiro tempo, o tricolor já fazia 2x0. O time jogava tanto que até passava despercebido o pecado maior, consumado na prancheta de Joel: Super Ézio no banco!

Mas na segunda etapa o Fluminense recuou, fruto do espírito retranqueiro de seu folclórico treinador. O Flamengo foi para cima e empatou em poucos minutos. Com o jogo cada vez mais nervoso, foi necessário lançar mão do super-herói, principalmente após a expulsão de Lira. Super Ézio não fez gol, mas lá estava ele, na área adversária, distraindo os beques rubro-negros, abrindo caminho para Aílton dançar como Garrincha e desferir o petardo, chute que tinha destino certo, determinado por uma necessidade absoluta, como se todos os eventos ocorridos desde o início dos tempos houvessem conspirado para a realização daquele desfecho, o fim último de toda a existência: Renato, o Édson Arantes do dia, meteu a barriga na pelota e decretou os 3x2. Uma vitória sublime: um “cínico e deslavado milagre!”, é o que provavelmente berrava Nélson no firmamento dos gênios, provando para Kant e Platão que, diante das incontáveis improbabilidades já consumadas pelo futebol, a crença em qualquer conhecimento a priori se mostra uma doce e infantil ilusão.

Ainda bem que meu sãopaulinismo já estava consolidado em bases firmes após os anos dourados de 91, 92 e 93. Caso contrário, eu teria me tornado nesse dia um daqueles raros e estranhos seres híbridos, paulistas de nascimento, cariocas de clube, ou vice e versa. E nesse mesmo ano, ano do pior time do São Paulo que eu já presenciei, contentei-me em torcer muito pelo Flu em outra epopéia, o embate contra o Santos, na semifinal do Brasileirão. Infelizmente, no segundo melhor jogo que eu já vi, foi a vez de Giovanni encarnar Pelé e conduzir o Peixe à decisão.

O mais estranho e assustador disso tudo é que foi justamente após o mágico ano de 95 que começou o declínio do futebol carioca. Coincidência ou não, isso ocorreu a partir do momento em que Super Ézio saiu do Flu, a Band deixou de transmitir o campeonato e Januário de Oliveira foi da glória ao ostracismo. O encanto havia acabado. Não tardou para que o nível do torneio fosse lá embaixo, para que os grandes caíssem em um abismo financeiro e para que o Tricolor, sem seu super-herói, fosse parar na terceirona.

Após sair do Flu, Super Ézio sumiu sem deixar notícia. Fiquei desamparado. Depois de algum tempo, por volta do ano 2000, quando já quase me esquecera de meu primeiro ídolo, tornei a vê-lo, em um programa esportivo. Foi uma experiência tétrica, mais do que decepcionante, desalentadora, fúnebre. Eis que Ézio, já despojado do epíteto e dos super poderes, concedia uma melancólica entrevista, explicando ao repórter porque havia abandonado o futebol para seguir uma mundana carreira de representante comercial, vendedor, ambulante, caixeiro-viajante ou algo que o valha, nem me lembro. Tampouco lembro do motivo: tratei de apagar os detalhes de minha memória. Em tal momento, enquanto ouvia as palavras do ex-super-herói, veio à minha mente um trecho da música que empresta o título a este texto: “When I heard that he was gone / I felt a shadow cross my heart / But he’s nobody’s hero...”. O mesmo pensamento me veio esses dias quando lembrei de Januário. Não sei nem se ele ainda está vivo!

Enfim, todo aquele onírico mundo maravilhoso ficou para trás. Mas posso afirmar com certeza absoluta que se não fosse essa época, a Rua Bariri, o Madureira, o Bangu, o Olaria, o Januário, o Super Ézio, os heróis de 95, o gol de barriga... dificilmente eu seria tão fanático por futebol como sou. Agora resta-me esperar que a TV paga tenha a bondade de transmitir o Fla-Flu de domingo para São Paulo. Tudo bem, eu sei que não será a mesma coisa: o jogo não vale título, longe disso; o Maracanã certamente não estará lotado; Joel estará do outro lado; Renato, de calça e camisa e sem faixa na cabeça, ficará parado, restrito ao metro quadrado de sua área técnica; no campo, nada de Romário nem de Super Ézio; e na cabine, em vez de Januário, um narrador insosso do Sportv. De qualquer modo, espero que o Flu vença com um gol de barriga do Somália aos 41 do segundo tempo. A magia acabou, é fato. Mas ainda “é disso, é disso que o povo gosta... e eu também, Ádison!”.

Assista aqui ao gol de barriga narrado por Januário de Oliveira. A qualidade da imagem é péssima, mas o que vale é o áudio. O engraçado é que nem o narrador nem o repórter Ádison Coutinho, que estava na beira do campo, perceberam o desvio de Renato. Demorou mais de um minuto para eles corrigirem o erro. Se não fossem as câmeras de TV, Aílton teria ficado com a glória.

6 comentários:

Brunão disse...

Eu sou mto novo para lembrar disso td...rss....

Mto bom o texto... acho q temos q começar a "filosofar a sério" (claro, q filosofar e a sério dentro dos nossos padrões...rsss) sobre o "Desencantamento do Futebol" e o "Crepúsculo dos Ídolos".

Brunão disse...

Hahaha.. mto bom.. eu não lembrava do "Renato Rambo"... haha.. foi foda...rss

Denis Barbosa Cacique disse...

César, adorei o texto.
Me fez lembrar das eliminatórias para a copa de 1994: família toda sentada no sofá assistindo numa Tv de 14" os jogos do Brsil. Aí o Brasil chegava ao ataque com chances de gol, meu tio se levantava do sofá e gritava "agora é gol". Engasgava e começava a tocir. Bons tempos.
Como eu disse, adorei o texto. Pelo jeito ainda tenho muita coisa aprender com você sobre redação.

César Zambon disse...

Que isso, Denis! Você escreve bem pra caramba. Eu não tenho muita coisa pra ensinar não...

Por falar nisso, e aquele texto seu da loteria que ia concorrer? Ce ganhou o prêmio? Ah é, esqueci... se ganhar, ce não vai contar pra ninguém...

Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso disse...

Fantástico texto!!!!

O campeonato carioca é muito bom... talvez tenha perdido um pouco a qualidade através da década que passou, mas vem retomando a qualidade... januário de oliveira, como eram engraçados os seus jargões! Eu tava pensando nisso essa semana, foi irônico observar esse texto...

fui no maracanã em um sábado de carnaval assistir botafogo x vasco, e posso dizer que fiquei embasbacado com a torcida carioca...

enfim

Anônimo disse...

Caramba, muito bom ler isso!! Também vivi essa época, mas aqui mesmo no RJ, foi exatamente assim como descreve...

Engraçado que eu, que nasci sem ver meu time ser campeão até 95 (A Copa do Brasil de 92, moralmente, é do Flu tb)via o São Paulo de Raí despachando o Milan e Barcelona e eu queria que o Flu fosse vencedor daquele jeito.

Estou esperando até hoje, hehe... quem sabe a partir desse ano.

Quanto ao Super-Ézio, realmente o Januário criou um "super-herói" que na minha mente de criança era imprescindível para o meu amor pelo Fluzão, já que era raro eu encontrar um colega que tb fosse tricolor. Muito cruel, como o cara fazia gols!

Espero que eles dois estejam melhor agora em 2010.

Saudações Tricolores!