“... está na hora de acabar de uma vez por todas com a tal lei do impedimento (...). Só o fim desse mandamento devolveria uma certa graça às artes ludopédicas. Paralisar uma linda jogada apenas porque um atacante está com o nariz além do beque é um atentado à existência. Imagine quantos gols teríamos a mais nas partidas! Seria fabuloso, de encher os olhos, mesmo com a escassez de craques momentânea. O fim da regra maldita devolveria o futebol às suas origens, daria o charme da pelada e a classe do gol de banheira. Acabaria com a tristeza que toma conta dos estádios e das várzeas, que melancolicamente seguem as regras do futebol profissa”.
Eis um trecho da coluna de Xico Sá na Folha de 24/08/2007, intitulada “Pelo fim da lei do impedimento”. Em primeiro lugar, devo dizer que adoro os textos desse brilhante escritor, conhecedor mais profundo da alma ludopédica e, em minha opinião, melhor cronista de futebol do Brasil atualmente. E digo mais do que isso: invariavelmente concordo com suas opiniões que, sempre originais e espirituosas, costumam chocar os nojentos repetidores de chavões, política e idiotamente corretos. Posto isso, fica bem claro que não será por falta de respeito e admiração pelo escritor que afirmarei o seguinte: ao escrever o supracitado texto, Xico definitivamente não estava em plena posse de suas faculdades mentais e cognitivas.
Em segundo lugar, digo que discordarei de Xico e tentarei refutá-lo fazendo uma apologia do impedimento. Mas que fique claro que não será uma apologia no sentido usual e vulgar do termo, a saber, “elogio” ou “louvor”, mas peço que seja considerada a acepção primária da palavra: “defesa”, termo jurídico. Digo isso para que todos saibam que não sinto a menor simpatia pelo meu “cliente”. De fato, a lei do impedimento é realmente confusa, chata, caduca e capaz de enfurecer o mais estóico dos torcedores, se é que há algum torcedor estóico. Contudo, aqui se aplica o velho princípio do “ruim com ele, pior sem ele”: o impedimento é um mal necessário. Explico porque na seqüência.
Xico diz que, com o fim do impedimento, o número de gols aumentaria consideravelmente. Isso é verdade, mas apenas no curto prazo. No primeiro momento, os atacantes iriam deitar e rolar sobre os atônitos beques adversários, que ficariam completamente perdidos, zanzando dionisiacamente pela cancha defensiva. Fazer gols passaria a ser uma tarefa facílima. “Mas então você concorda com o Xico”, alguém dirá. Eu respondo que não e começo dizendo que o aumento do número de gols por si só não pode ser declarado uma vantagem, sem maiores considerações. Ora, tudo que é fácil é bom no começo, mas depois de pouco tempo perde a graça, perde o tesão. Por acaso alguém fica cheio de si ao “conquistar” uma vagabunda qualquer? Ou não seria mais gratificante levar para a cama aquela mulher difícil, que dá fora em todo mundo? Jogos com oito, nove gols são legais de vez em quando para quebrar a rotina, mas se virassem regra, ficariam cansativos. Por acaso alguém gosta de assistir a jogos de handebol? Saem trezentos gols para cada lado e o jogo é chatíssimo. É tanto gol que fica chato. E mais: se esses gols não fossem bonitos (e de fato não seriam, como veremos a seguir), não adiantaria nada aumentar a sua média. Para aumentar o número de gols de canela e de bate-rebate é melhor não aumentar.
E é justamente uma piora na qualidade do futebol jogado e dos gols marcados que o fim do impedimento acarretaria como efeito a longo prazo. Todos sabem que a necessidade é a mãe das invenções. A lei do impedimento cria dificuldades terríveis para os jogadores de ataque e os obriga a desenvolver técnicas sofisticadíssimas no que diz respeito à noção do tempo de bola, aceleração, visão de jogo, força do passe e rapidez de raciocínio. Qualidades que fazem de Zidane, Alex e Riquelme gênios da armação, Careca, Romário e Van Basten gênios da grande área. No entanto, sem o impedimento, nenhuma dessas habilidades seria lapidada naqueles que possuem o dom, tampouco desenvolvidas pelos menos prodigiosos. Qualquer caneludo poderia se transformar em artilheiro, qualquer beque-de-fazenda despontaria como novo Gérson, uma vez que todo chutão para frente serviria de assistência para os atacantes, livres, mandarem para as redes. A magia e a beleza de um passe milimétrico, aquele que deixa o centroavante sozinho e ao mesmo tempo em condições de jogo, desapareceria. A inteligência do atacante que faz que vai, não vai e acaba “vando”, deixando os beques de braços erguidos, clamando por um impedimento inexistente, seria obscurecida pela força bruta dos pernas-de-pau que só sabem trombar nos adversários. Resumindo: os brucutus ganhariam ainda mais terreno e os craques se dissipariam definitivamente na neblina, nas trevas do passado ludopédico. Por isso eu digo que os gols, ainda que aumentassem em número, perderiam em qualidade e beleza.
Mas tudo o que foi dito nos parágrafos anteriores parte de um pressuposto oculto assumido por Xico em sua análise, a saber, de que, mesmo com o fim do impedimento, as defesas continuariam jogando da mesma forma que antes. Eu digo, porém, que isso ocorreria apenas no começo. Não demoraria muito para aparecer um “professor pardal”, de prancheta em mãos, concluindo que a única maneira de impedir que sua equipe, tecnicamente fraca, tomasse uma lavada de um adversário forte seria pôr em prática uma nova estratégia, a única possível para se evitar uma avalanche de gols no novo sistema. No jogo seguinte então, tal gênio revoluciona o futebol, escalando a linha de quatro zagueiros fixa e atrás da própria grande área. Mais três volantes na frente protegendo a zaga e pronto: uma barreira intransponível de sete marcadores impede qualquer trator de romper o ferrolho. Na seqüência, nosso amigo faz escola e, a partir daí, o futebol vira “gol a gol”. Afinal, como é impossível furar o bloqueio, única chance de se anotar um tento é abusar da famosa “ligação direta”. Tome chutão, tome bate-rebate, tome brucutu no ataque. Escanteios e faltas próximas da área passam a valer ouro. De modo que o efeito final seria exatamente o oposto do descrito por Xico: os gols iriam rarear ainda mais. E pior: todo tento, sem exceção, seria fruto de um bololô na área ou de um chute de longe. Jogada trabalhada, tabela, passe de primeira... só em filmes de idos remotos.
Nesse estágio, o football inglês, nosso amado ludopédio, estaria a um passo de se tornar um futebol americano jogado com os pés. Não tardaria para que as equipes fossem divididas em duas: time de ataque e time de defesa. Em pouco tempo os jogadores passariam a atuar dentro de armaduras e capacetes, uma vez que os choques seriam cada vez mais freqüentes. Então só faltaria abolir o goleiro, tirar o travessão e trocar a bola redonda pela oval.
Por essas e outras é que eu sempre dou graças aos deuses ludopédicos pelo fato do futebol ter sido inventado na Inglaterra. O conservadorismo ferrenho dos anciões da International Board é de fato uma benção. Já pensou se fosse no Brasil, com toda essa tara por inventar leis, mudar leis, emendar leis, acabar com leis, recriar leis, não cumprir leis? Após um século e meio de vida, o futebol já teria se transformado em alguma espécie de pólo no gelo, com cavalos de patins e tacos de baseball. No fim, estaria certo o rei inglês daquele vídeo do Bruno: “Pega o cavalo! Aí vai com o cavalo! Corre com o cavalo...”.
Eis um trecho da coluna de Xico Sá na Folha de 24/08/2007, intitulada “Pelo fim da lei do impedimento”. Em primeiro lugar, devo dizer que adoro os textos desse brilhante escritor, conhecedor mais profundo da alma ludopédica e, em minha opinião, melhor cronista de futebol do Brasil atualmente. E digo mais do que isso: invariavelmente concordo com suas opiniões que, sempre originais e espirituosas, costumam chocar os nojentos repetidores de chavões, política e idiotamente corretos. Posto isso, fica bem claro que não será por falta de respeito e admiração pelo escritor que afirmarei o seguinte: ao escrever o supracitado texto, Xico definitivamente não estava em plena posse de suas faculdades mentais e cognitivas.
Em segundo lugar, digo que discordarei de Xico e tentarei refutá-lo fazendo uma apologia do impedimento. Mas que fique claro que não será uma apologia no sentido usual e vulgar do termo, a saber, “elogio” ou “louvor”, mas peço que seja considerada a acepção primária da palavra: “defesa”, termo jurídico. Digo isso para que todos saibam que não sinto a menor simpatia pelo meu “cliente”. De fato, a lei do impedimento é realmente confusa, chata, caduca e capaz de enfurecer o mais estóico dos torcedores, se é que há algum torcedor estóico. Contudo, aqui se aplica o velho princípio do “ruim com ele, pior sem ele”: o impedimento é um mal necessário. Explico porque na seqüência.
Xico diz que, com o fim do impedimento, o número de gols aumentaria consideravelmente. Isso é verdade, mas apenas no curto prazo. No primeiro momento, os atacantes iriam deitar e rolar sobre os atônitos beques adversários, que ficariam completamente perdidos, zanzando dionisiacamente pela cancha defensiva. Fazer gols passaria a ser uma tarefa facílima. “Mas então você concorda com o Xico”, alguém dirá. Eu respondo que não e começo dizendo que o aumento do número de gols por si só não pode ser declarado uma vantagem, sem maiores considerações. Ora, tudo que é fácil é bom no começo, mas depois de pouco tempo perde a graça, perde o tesão. Por acaso alguém fica cheio de si ao “conquistar” uma vagabunda qualquer? Ou não seria mais gratificante levar para a cama aquela mulher difícil, que dá fora em todo mundo? Jogos com oito, nove gols são legais de vez em quando para quebrar a rotina, mas se virassem regra, ficariam cansativos. Por acaso alguém gosta de assistir a jogos de handebol? Saem trezentos gols para cada lado e o jogo é chatíssimo. É tanto gol que fica chato. E mais: se esses gols não fossem bonitos (e de fato não seriam, como veremos a seguir), não adiantaria nada aumentar a sua média. Para aumentar o número de gols de canela e de bate-rebate é melhor não aumentar.
E é justamente uma piora na qualidade do futebol jogado e dos gols marcados que o fim do impedimento acarretaria como efeito a longo prazo. Todos sabem que a necessidade é a mãe das invenções. A lei do impedimento cria dificuldades terríveis para os jogadores de ataque e os obriga a desenvolver técnicas sofisticadíssimas no que diz respeito à noção do tempo de bola, aceleração, visão de jogo, força do passe e rapidez de raciocínio. Qualidades que fazem de Zidane, Alex e Riquelme gênios da armação, Careca, Romário e Van Basten gênios da grande área. No entanto, sem o impedimento, nenhuma dessas habilidades seria lapidada naqueles que possuem o dom, tampouco desenvolvidas pelos menos prodigiosos. Qualquer caneludo poderia se transformar em artilheiro, qualquer beque-de-fazenda despontaria como novo Gérson, uma vez que todo chutão para frente serviria de assistência para os atacantes, livres, mandarem para as redes. A magia e a beleza de um passe milimétrico, aquele que deixa o centroavante sozinho e ao mesmo tempo em condições de jogo, desapareceria. A inteligência do atacante que faz que vai, não vai e acaba “vando”, deixando os beques de braços erguidos, clamando por um impedimento inexistente, seria obscurecida pela força bruta dos pernas-de-pau que só sabem trombar nos adversários. Resumindo: os brucutus ganhariam ainda mais terreno e os craques se dissipariam definitivamente na neblina, nas trevas do passado ludopédico. Por isso eu digo que os gols, ainda que aumentassem em número, perderiam em qualidade e beleza.
Mas tudo o que foi dito nos parágrafos anteriores parte de um pressuposto oculto assumido por Xico em sua análise, a saber, de que, mesmo com o fim do impedimento, as defesas continuariam jogando da mesma forma que antes. Eu digo, porém, que isso ocorreria apenas no começo. Não demoraria muito para aparecer um “professor pardal”, de prancheta em mãos, concluindo que a única maneira de impedir que sua equipe, tecnicamente fraca, tomasse uma lavada de um adversário forte seria pôr em prática uma nova estratégia, a única possível para se evitar uma avalanche de gols no novo sistema. No jogo seguinte então, tal gênio revoluciona o futebol, escalando a linha de quatro zagueiros fixa e atrás da própria grande área. Mais três volantes na frente protegendo a zaga e pronto: uma barreira intransponível de sete marcadores impede qualquer trator de romper o ferrolho. Na seqüência, nosso amigo faz escola e, a partir daí, o futebol vira “gol a gol”. Afinal, como é impossível furar o bloqueio, única chance de se anotar um tento é abusar da famosa “ligação direta”. Tome chutão, tome bate-rebate, tome brucutu no ataque. Escanteios e faltas próximas da área passam a valer ouro. De modo que o efeito final seria exatamente o oposto do descrito por Xico: os gols iriam rarear ainda mais. E pior: todo tento, sem exceção, seria fruto de um bololô na área ou de um chute de longe. Jogada trabalhada, tabela, passe de primeira... só em filmes de idos remotos.
Nesse estágio, o football inglês, nosso amado ludopédio, estaria a um passo de se tornar um futebol americano jogado com os pés. Não tardaria para que as equipes fossem divididas em duas: time de ataque e time de defesa. Em pouco tempo os jogadores passariam a atuar dentro de armaduras e capacetes, uma vez que os choques seriam cada vez mais freqüentes. Então só faltaria abolir o goleiro, tirar o travessão e trocar a bola redonda pela oval.
Por essas e outras é que eu sempre dou graças aos deuses ludopédicos pelo fato do futebol ter sido inventado na Inglaterra. O conservadorismo ferrenho dos anciões da International Board é de fato uma benção. Já pensou se fosse no Brasil, com toda essa tara por inventar leis, mudar leis, emendar leis, acabar com leis, recriar leis, não cumprir leis? Após um século e meio de vida, o futebol já teria se transformado em alguma espécie de pólo no gelo, com cavalos de patins e tacos de baseball. No fim, estaria certo o rei inglês daquele vídeo do Bruno: “Pega o cavalo! Aí vai com o cavalo! Corre com o cavalo...”.
5 comentários:
Belíssimo texto, César. Você devia enviá-lo pro Xico. Teria retorno, não tenho dúvidas.
Enfim... acho q acabar com o impedimento seria o mesmo q acabar com o futebol. O esporte q resultasse dessa subtração seria outro: sem meio de campo, sem articulação, sem triangulação, sem inteligência, sem graça.
Abraço e parabéns pelo texto, um dos melhores do blog.
Valeu, Denis. É uma ótima sugestão essa de enviar o texto. Quem sabe não dá uma divulgada no blog... estamos precisando aumentar a "audiência"...rss
..."aumentar a audiência" ou "gerar uma audiência"?
Eu tbm acho q vc devia enviá-lo para o Xico. Concordo plenamente com vc. O futebol não existe sem impedimento... nem existiu historicamente...rss... mas, isso já é assunto para um outro texto...
Pensando bem, sem impedimento eu poderia jogar de centroavante...
Na rua num existe impedimento. Vamos jogar?
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